A luta democrática e o Araguaia

Exclusivo.





O governo da presidente Dilma Rousseff tem imensas tarefas na área de Direitos Humanos. Entre elas, fazer avançar as premissas básicas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), particularmente no eixo do direito à memória e à verdade, instituindo em definitivo a Comissão Nacional da Verdade para passar a limpo a recente história brasileira naquilo que concerne aos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985).

Por Paulo Fonteles Filho*

Na pauta da sociedade estão as iniciativas dos ministérios públicos federais do Pará, Distrito Federal e São Paulo nos anos de 2001 e 2002, a Ação Civil Pública de 2009 do Ministério Público Federal de São Paulo sobre ocultação de cadáveres no Cemitério de Perus e a continuidade e reforço do Grupo de Trabalho Tocantins do Ministério da Defesa, que nos anos de 2009 e 2010 têm palmilhado a região do Araguaia levantando informações que permitam a localização dos despojos dos desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), além da abertura dos arquivos dos organismos de repressão, fazendo cumprir a corajosa decisão da Juíza Solange Salgado, titular da 1ª Vara Federal de Brasília.

O Brasil, quando se debruça sobre o Araguaia como aspecto decisivo para a efetiva construção do Direito à Memória e a Verdade, passa a limpo um tortuoso período da vida nacional e busca consolidar a sua democracia. E essa é a questão política de fundo que deve iluminar nossas mentes e corações.

Tal empreendimento é uma tarefa histórica e necessidade para o próprio desenvolvimento da vida nacional brasileira porque o processo democrático está em construção permanente, é algo perene, em movimento, dinâmico e está vinculado às aspirações profundas no sentido de entender e interpretar o Brasil contemporâneo.

A luta na qual estamos inseridos vai se iniciar, ou pelo menos ter um marco fundamental a partir da primeira caravana de familiares que, no segundo semestre de 1980 percorreu os sertões do baixo Araguaia, sob o cutelo do controle extremo do Conselho de Segurança Nacional que, a rigor, iniciava através do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (Getat) a militarização das questões fundiárias na região do Bico do Papagaio. Ali, nos dois anos anteriores, cerca de 250 mil hectares de terras foram ocupados pelo movimento social camponês. 

Fredeico e Adalgisa, camponeses que deram apoio a Guerrilha.
Fico pensando na fibra daqueles pais e mães, já idosos, percorrendo de ônibus ou em barcos a imensa região banhada pelo rio dos Carajás e todos, segundo o que conta a memória, sem reclamar de absolutamente nada, a não ser das forças repressivas de então que fez de seus filhos pessoas desaparecidas.


Ali, naquela primeira expedição, que sistematizou um conjunto de informações sobre o conflito armado no sul do Pará, algumas questões foram indicadas e uma a uma comprovadas ao longo destes 30 anos.

A primeira verificação dos caravaneiros foi o fato de que realmente houve a guerrilha do Araguaia.

A segunda, alvo de grande debate da esquerda brasileira no início da década de 1980 era se aquele movimento teve ou não apoio popular. O rigor documental, e nisto se inclui a memória camponesa, indica amplo apoio dos camponeses à causa dos combatentes. 

Imagens em aréas de escavações, em Xambioá (To)

A terceira dizia respeito à consciência de que a população local foi absolutamente massacrada e violada em seus direitos e, a decisão de anistiar e reparar economicamente muitos daqueles torturados é um importante passivo em direitos humanos do país que, infelizmente, não se concretizou em função da extemporânea liminar do juiz federal substituto da 27ª Vara do Rio de Janeiro, José Carlos Zebulum, em ação proposta pelo advogado João Henrique Nascimento de Freitas, assessor jurídico do deputado estadual Flavio Bolsonaro (PP-Rj).

Em dois anos da concessão da anistia pelo Ministério da Justiça e a respectiva reparação econômica para os 45 camponeses, ainda suspensas, seis desses anistiados, todos lavradores do Araguaia foram a óbito.

A quarta e última conclusão da caravana de 1980 fora o fato de que muitos guerrilheiros haviam sido presos com vida e se encontravam desaparecidos. Recentemente, o major Curió decidiu abrir os arquivos e revelou que 41 deles foram mortos covardemente a sangue frio. 

Ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, recebe lista de Torturadores do Araguaia.
Uma pendência, como uma simbiose, acompanha todo o leito deste processo tortuoso: onde estarão os mortos e desaparecidos do Araguaia? No curso das últimas três décadas essa questão tem aparecido na vida brasileira como um episódio que nos agrilhoa ao passado, num verdadeiro AI-5 mental que não nos deixa, em definitivo, cuidar com plenitude das tarefas do futuro no sentido de aperfeiçoar nossa vida democrática e as instituições republicanas, além de ir calcificando uma cultura política da impunidade que rebaixa, cada vez mais, a força do interesse popular no sentido de se dirigir ao centro das decisões que são tomadas em nome da maioria. Ora, porque não é em nome da verdade e da justiça que votamos ou somos votados?

A questão é que os recalcitrantes que insistem em esconder ou destruir arquivos são espécimes unidos pela força gravitacional do obscurantismo que só existe e terá vida enquanto o nosso processo democrático não for aperfeiçoado. E elevar o nível da democracia brasileira passa por resolver, em definitivo, os arquivos que toda a sociedade tem direito de conhecer, além de fazer a entrega daqueles que continuam desaparecidos. Essa é uma tarefa de feição democrática que as instituições brasileiras têm a missão de realizar. Questão, a saber, e se haveremos de nos render aos recalcitrantes que fizeram da tortura prática contumaz do aparato estatal brasileiro. Aqui vale a lembrança de um lema da antiga UDN: "o preço da liberdade é a eterna vigilância".

Quando a nação brasileira prover o milenar direito de podermos enterrar, com as honras de nossa época, aqueles que lutaram pelo futuro que afinal estamos vivendo, teremos consolidado importante passo para que o passado jamais retorne às nossas casas com suas madrugadas sombrias.

Cada vez mais creio que a superação de toda uma época histórica é, sobretudo, decisão política. A criação da Comissão Nacional da Verdade, a veemente punição aos torturadores, o reforçamento do Grupo de Trabalho Araguaia e a decidida luta pela memória nacional é o caminho seguro para o futuro que queremos ter.


*Dirigente do PCdoB do Pará e pesquisador do Grupo do Trabalho Araguaia.

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