Uma crônica: Julgamentos que dão pena

Uma crônica
Julgamentos que dão pena

Por Erika Morhy


Foto: Erika Morhy


Sou jornalista de formação, mas acompanhei, pura e simplesmente, como cidadã a leitura do julgamento oral de onze acusados pelo Plano Sistemático de Sequestro de Bebês durante a ditadura cívico-militar na Argentina (1976-1983); leitura realizada na invernosa noite desta quinta-feira (05), em Buenos Aires. Digo “como cidadã”, porque, como repórter, eu teria outra postura, desde a apuração prévia de informações, a credenciamento para estar dentro do tribunal e produção de texto, por exemplo. Não, eu preferi me “escorar” na deixa de mestranda, apanhar minha filha no colégio e tomar o metrô “a Retiro” com ela para a avenida Comodoro Py, onde já se concentravam milhares de pessoas de diferentes gerações para assistir, ao lado do Tribunal Oral Federal 6, pelo enorme telão em cima de um palco, uma cena que muitos defensores dos direitos humanos também esperam que ocorra no Brasil: a confirmação de crimes denunciados pelos movimentos sociais cometidos pelo regime de exceção  e a condenação de seus mandantes, cúmplices e executores.

Enquanto o Brasil teve a ditadura militar mais longa da história dos países da América Latina e só este ano teve instituída uma comissão que pretende abrir arquivos secretos capazes de legitimar denúncias de violações contra os direitos humanos, a Argentina já começou a condenar seus algozes, graças aos esforços hercúleos de entidades dos movimentos sociais. Foram várias as organizações citadas durante o ato na rua e no tribunal e nominadas em bandeiras de cores predominantemente brancas, azuis, vermelhas e verdes. Mas todas unidas pela busca de justiça. Mas as grandes evocadas foram as Avós da Praça de Maio, que provocaram a Justiça, incluindo 35 casos de bebês desaparecidos do colo de seus pais, detidos pelo regime, ou por ocasião do parto das gestantes encarceradas e levadas a maternidades controladas pelo sistema.

A crise existencial - Mirando a face de cada um daqueles senhores e, sim, de uma senhora, enfileirados no banco dos réus, eu ficava impávida, imaginando como, gente como a gente, pode ser capaz de cometer atrocidades feito essas. Os ex ditadores Videla e Bignone, por exemplo, têm mais de 80 anos. Em geral, os idosos me parecem tão cândidos e tenho dificuldade de sentir raiva deles ou desejar-lhes coisas como prisão perpétua. Em algum momento, entre 18h20 e 18h50, enquanto a presidente do tribunal lia as sentenças, eu lembrei do caso “Vavá Mutran”, praticamente inocentado da acusação de matar uma criança de 8 anos, em Marabá. Um homem robusto, em cadeira de rodas, com laudo médico... até parecia meu avô, querido, querido Tomé. Lembrei também do caso “Brasília”, sindicalista assassinado em Altamira, e até hoje injustiçado, e de sua irmã, a “Santa”, que ficou frente a frente com um grupo de fazendeiros no tribunal que livrou a todos.

O pouco do que já foi noticiado até então, inclusive a dor das famílias dilaceradas pelo regime ditatorial, é suficiente para dirimir qualquer fantasia e mito, individual ou coletivo. E um pedido que será levado pelo Tribunal à presidenta da Argentina pode não só consolidar a segurança de que é preciso ser feita justiça, mesmo que chegue quando o cidadão já se fez ancião. A digitalização e disponibilização de todas as provas e informações secretas que fazem parte do processo encerrado na noite de ontem será, deve ser, em grande medida, importante para a abertura e sustentação de processos semelhantes que podem vir a ser abertos. Inclusive porque o julgamento não só penalizou criminosos, como definiu o que estava em suspenso a 36 anos, o conceito do que as Avós da Praça de Maio chamaram no processo de “Plan Sistematico de Robo de Ninõs”, já que o próprio ditador Rafael Videla classificou os casos como “isolados”.

05 de junho de 2012. Sacramentado o plano como parte da estrutura do sistema ditatorial, acatado pela Justiça argentina como: “prática sistemática e generalizada de roubo, retenção e ocultamento de menores de idade” no “marco de um plano geral de aniquilação que se estendeu sobre parte da população civil, com o argumento de combater a subversão, implementando métodos de terrorismo de Estado, durante os anos de 1976 a 1983, da última ditadura militar”.

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