A REGULARIZAÇÃO DE TERRAS GRILADAS NO PARÁ: O AGRONEGÓCIO PREPARA A TERRA PARA EXPROPRIAR, CONCENTRAR, MONOPOLIZAR, EXCLUIR E EXPLORAR
José Sobreiro Filho
Professor do Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Professor do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe do Instituto de
Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista
(UNESP)
(Acampamento Dalcídio Jurandir - MST Pará Foto: VBrigida)
O estado do Pará detém uma das
maiores concentrações de terras do Brasil e do Mundo. Embora o Pará tenha
dimensão aproximada de 124 milhões de hectares e o INCRA tenha expressiva
dificuldade em apresentar publicamente informações precisas, um cenário de análise
dos dados declaratórios do Sistema Nacional de Cadastro Rural evidencia que no
ano de 2018 existem mais de 130 milhões de hectares de terras declaradas
enquanto públicas e privadas. Há um nítido problema posto no horizonte: existem
mais declarações de titularidade do que terra de fato. Ainda segundo os dados
declaratórios de 2018 há uma soma deste montante pouco maior do que 10 milhões
de hectares de titularidade do Instituto de Terras do Pará, pouco mais de 1,6
milhões da Gerência Regional do Patrimônio da União e mais de 41 milhões de
competência do INCRA. Doutro lado, há mais de 80 milhões de hectares declarados
sob a forma de mais de 160 mil imóveis tidos como privados/particulares. Ao
excluirmos deste cálculo as áreas objetivamente declaradas com titularidade de
órgãos do Estado e das unidades federativas, veremos que há mais de 80 milhões
de hectares declarados enquanto particulares. Deste total, temos a soma de 60,9
milhões de hectares totalizam as áreas de imóveis com perfil acima de 2 mil hectares
e, em um recorte ainda mais específico, os imóveis acima de 100 mil hectares
concentram cerca de 27 milhões em área.
Não é de hoje que o espectro
do agronegócio, especialmente da soja, demonstra desejo em invadir vorazmente
as terras paraenses e dar uma nova face às concentrações de terra e renda. O
maior empecilho para o avanço do capital financeiro é justamente a questão da
legitimidade das terras no estado. No entanto, a atualidade do setor
legislativo do estado do Pará se demonstra solidário, através do PL 129/2019,
em reeditar esta fronteira para o agronegócio e abrir novas opções para os
latifundiários, inclusive com ataque à reforma agrária, suporte à
“regularização” de terras ilegítimas e a sua oferta ao mercado de terras. Tudo
isso porque há um crescente imaginário da modernização no campo paraense
associado à percepção confusa ou até intencional de que o agronegócio vai dar
uma nova roupagem ao latifúndio e às economias do Pará, ignorando sua real face
baseada no aprofundamento dos processos de expropriação, concentração,
monopolização, exclusão e exploração. Aos auspícios do discurso da
imprescindibilidade da regularização a posse da terra, o projeto de lei abre a
possibilidade para que inúmeras formas de conflitos e problemas se
intensifiquem e passem a compor a realidade do campo paraense, dentre eles:
1 – Apesar de declarar
defender princípios de justiça social, a regularização prevista no projeto vai
“favorecer” desigualmente os declarantes. De um lado, os declarantes com áreas
menores de 2 mil hectares, uma soma de aproximadamente 153 mil imóveis que
representam 19,6 milhões de hectares de terras, significarão uma grande
quantidade de imóveis a serem regularizados, porém em área muito inferior aos
imóveis grandes. Do outro lado, os declarantes com áreas acima de 2 mil
hectares, que somam mais de 6,9 mil imóveis e área de 60,9 milhões, mas que
significam três vezes a área dos pequenos e médios imóveis. Há uma
desproporcionalidade abismática entre os estratos de área. Além disso, um bom e
justo caminho seria atribuir atenção diferenciada às propriedades
caracterizadas enquanto grandes, para que o projeto de lei não se torne um
processo de legitimação da concentração e da grilagem;
2 – o projeto de lei ignora
claramente que a disputa por terras no Pará faz parte de um cenário composto
por violência e mortes no campo, bem como o fato de que há expressivo potencial
de conflitos visto os processos de luta pela terra e resistência de posseiros,
sem-terras, trabalhadores, populações tradicionais e originárias. Em outras
palavras, ignora-se que o Pará detém casos emblemáticos de massacres no campo,
como Eldorado dos Carajás e Pau D’Arco, e que registrou 294 assassinatos no
campo entre o período de 1997-2018, sendo o estado responsável por 35% do total
de mortes relacionadas à disputa pela terra no país. Face ao elevado grau de
violência que marca a história do estado e a realidade da posse da terra ter
expressivo hiato em relação a legitimidade, podemos compreender que os
governantes assumem o elevado risco de incitar aumento de violência no campo?;
(Acampamento Dalcídio Jurandir - MST Pará Foto: VBrigida)
3 – a proposta se baseia, em
boa parte, através do mercado de terras. Além de reforçar a exclusão pelo
desigual poder de compra entre os sujeitos políticos interessados e buscar
consolidar a fase mais perversa da commoditização da terra no estado,
este fato coloca o Pará em uma posição estratégica para o avanço não somente da
concentração de terras através da compra, mas também do agronegócio que, como
já é sabido, demanda terras regularizadas, baixos preços, capacidade de
escoamento (ferrovias, hidrovias e rodovias), posição estratégica do estado no
globo terrestre, água e outros recursos naturais etc. Em outras palavras, esse
processo, através do mercado de terras, abre brecha para a amplificação das
possibilidades de produção de commodities em detrimento da soberania
alimentar e da segurança alimentar do povo paraense, permite maior força à
subordinação do território ao capital financeiro, ao uso de agrotóxicos e seus
diversos problemas relacionados à saúde e intoxicação (alimentos, água dos rios
etc.), a baixa geração de empregos, a concentração de renda etc.;
4 – o projeto é excludente e
ideologizado, pois busca alijar do acesso à terra justamente os movimentos que
lutam por território. O estado do Pará é caracterizado por uma diversidade de
dezenas de organizações políticas do campo e que dependem do campo para viver.
Em outras palavras, além de seu caráter antidemocrático, também poderá excluir
trabalhadores, camponeses e povos tradicionais de um dos momentos mais
relevantes da história do estado. Essa opção do projeto evidencia o privilégio
dos setores aliados em detrimentos de interesses populares como a reforma
agrária. Atualmente, o estado do Pará detém aproximadamente 280 mil famílias
assentadas em 20 milhões de hectares. Esse fato nos demonstra que as áreas
acima de 2 mil hectares, ao concentrar 60,9 milhões de hectares, teria
potencial para, no mínimo, dobrar ou até triplicar a quantidade de famílias
assentadas. É uma evidência objetiva de que o setor popular não faz parte do
projeto e que há preferência de entregar a terra do estado, um bem público,
para o mercado ao invés de optar por uma política para o povo. A pergunta que
nos fica é simples, “se os movimentos organizados que lutam por território no
campo estão excluídos e a concentração se baseia nas grandes propriedades,
então para quem interessa regularizar as terras no Pará?;
5 – A proposta prevê a
legalização da grilagem em detrimento de uma aptidão do estado à reforma
agrária enquanto uma possível via de preservação ambiental e resolução da
concentração de terra e renda. Ademais, a opção também corrobora racionalidades
como a da titularização de áreas com o objetivo de recolocar terras do estado
em disponibilidade para o mercado de terras, bem como fizera o governo Temer.
Há uma clara opção em se trocar os interesses do povo e a preservação ambiental
pela concentração de renda, de terras e o aumento da violência, ou seja, é um
projeto público sem participação e real interesse do povo.
Por fim, destacamos que as
terras do estado do Pará precisam, de fato, avançar em termos de regularização.
Contudo, precisamos construir um modelo popular de regularização das terras
para evitar que apenas uma camarilha detenha o monopólio das terras e as
subordinem ao agronegócio.